Territórios livres: o direito a dizer NÃO aos empreendimentos predatórios | EPISÓDIO 01

A desigualdade no Brasil vai muito além do social e econômico. Ela é evidente também no controle, acesso e uso dos bens naturais, como a água dos rios e o solo fértil. Assim, enquanto uma multinacional está livre para aplicar toneladas de veneno em alimentos que abastecem cidades inteiras, um agricultor familiar pode ter sua produção confiscada e destruída por não ter em sua propriedade uma simples parede azulejada onde beneficia o alimento, exigida pela inspeção sanitária. Enquanto uma mineradora pode “matar” uma bacia hidrográfica e voltar a operar no mesmo local, saindo impune do crime que cometeu, um ribeirinho será severamente punido se pescar em determinados locais que até pouco tempo seus pais pescavam.  

Mas até que ponto, temos de aceitar a presença de segmentos econômicos predatórios? Diante de um contexto de injustiças socioambientais, você já parou para pensar sobre o “direito de dizer não”? Esse “dizer não” aplicado ao seu bairro, cidade, região, rio, solo fértil ou patrimônios naturais, históricos e culturais. A consolidação do direito coletivo de “dizer não” às decisões governamentais e de grandes empresas com base em conceitos consolidados como: saúde, bem estar, preservação dos recursos naturais, memória, entre outros.

Em outras palavras, em contraponto ao aumento das desigualdades, o Brasil começa a incorporar uma discussão mundial – já em curso – sobre esse “direito de dizer não” e a forma de lutar por ele ou regulamentá-lo. Você já ouviu falar, em “áreas” ou “territórios livres”, por exemplo, de venenos, segmentos econômicos, ataques ao meio ambiente, especulação imobiliária? 

Essa é uma expressão que está ganhando corpo, sendo construída por pesquisadores, lideranças comunitárias, movimentos sociais, organizações da sociedade civil, ambientalistas, organizações de trabalhadores. Ela começa a aparecer em legislações e normativas em diferentes regiões do país. Também tem a capacidade de denunciar o controle desigual sobre os bens naturais (lembra da mineradora e do pescador?) e busca que sejam impostas restrições a práticas e atividades consideradas danosas para as populações e ao meio ambiente. 

Esse é o tema que irá nortear a nova série especial que nós, do Lei.A, produzimos. O interesse particular de um segmento econômico ou mesmo de governo, jamais pode se sobrepor ao interesse público.

Ou seja, uma vizinhança, um bairro, uma cidade, uma região ou um país inteiro têm o direito de pautar o debate público e dizer “não” a algo que julgam agredir o interesse das populações locais. Esse direito de negação é também o direito de dizer “sim” a outras atividades, de escolher a prioridade que se pretende dar aos usos dos recursos naturais. 

Unidades de Conservação, Áreas protegidas e Territórios Livres 

Mas os mecanismos de se dizer “sim” à preservação de um território, seus recursos e patrimônios são variados. É preciso entender essas diferenças antes de avançar sobre o “direito de dizer não”. 

Um deles são as unidades de conservação. Elas são áreas criadas pelo Poder Público (municipal, estadual e federal) que têm limites definidos e devem ser protegidas devido à relevância de suas características naturais.

Outras delimitações protegidas também restringem o desenvolvimento de atividades econômicas, como áreas de preservação permanente e reservas legais que estão previstas no Código Florestal, assim como as terras indígenas e os territórios quilombolas.

Porém, o conceito de “territórios livres” ou o “direito de dizer não” vão além. A autodeclaração de um território livre por uma comunidade pressupõe um processo de organização política, de busca da opinião pública em favor da legitimidade da reivindicação, reconhecendo-a como justa e necessária à sociedade e às gerações futuras, além de uma permanente mobilização calcada no desejo do território manter-se livre. 

O conceito de “território livre” dá um passo à frente dos outros conceitos, pois apresenta uma agenda propositiva. Ele diz respeito fundamentalmente às populações locais poderem propor o modelo de desenvolvimento que querem no local onde vivem, de participar da escolha de estratégias econômicas, políticas e culturais que garantam trabalho, renda e bem estar à sociedade local. Como tudo isso está intrinsecamente relacionado ao acesso e conservação de bens naturais, as lutas por territórios livres incorporam o compromisso de conservar a biodiversidade como um bem comum.

A ideia de “zonas” ou “áreas livres” não é nova. Há muitas décadas, fala-se no país de áreas livres de contaminação de doenças animais, como febre aftosa, ou mesmo de doenças humanas. Porém, a expressão atualmente se estendeu para outros campos, com novos significados – por exemplo, áreas livres de agrotóxicos, transgênicos, hidrelétricas, petróleo e mineração –, com alguns resultados já alcançados.

 Da forma vanguardista e incisiva como tem entrado no debate político, não se pode falar de um conceito pronto ou universal de “áreas livres”. É desejável que ele seja problematizado e venha sendo disputado. Na Amazônia e em outras regiões, pode-se discutir, por exemplo, se as formas de organização de reservas indígenas se aproximam da proposição. 

Em entrevista ao Lei.A, Luis Ventura, integrante do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), explica a importância de se entender o que é a demarcação terras indígenas e as formas de organização desses povos para saber de que forma isso dialoga com o conceito de territórios livres.  Ele aponta ainda as dificuldades que essas populações vivem hoje diante da tentativa de avanço do setor minerário sobre esses territórios.

Mesmo que ainda demore a se ter uma definição precisa da nomenclatura a ser dada ao “direito de dizer não”, exemplos de “territórios livres” ou situações similares vêm surgindo a todo momento pelo Brasil e pelo mundo.

#conheça

Uma teia de “áreas livres” vem surgindo

 Em 2017, por exemplo, a Câmara Municipal de Porto Alegre aprovou um projeto que tornará a área rural daquele município uma “zona livre de agrotóxicos”. Pelo texto aprovado, os agricultores terão um prazo de 15 anos para se adaptar e produzir sem o uso de venenos.

A lei de Porto Alegre foi um feito inédito que abriu um precedente no país. Desde então, outros municípios seguiram o exemplo.

 Em outubro de 2019, outra legislação transformou o município de Florianópolis em local “Zona Livre de Agrotóxicos”. Aprovada na Câmara Municipal e sancionada pelo prefeito, a lei tornou infração – punível com multa – “armazenar e aplicar qualquer tipo de pesticida”, numa área de 424 quilômetros quadrados que cobre 97,3% da capital de Santa Catarina. Florianópolis tornou-se o primeiro território brasileiro totalmente isento da aplicação e do armazenamento desses químicos.

Leia a íntegra da lei:https://leismunicipais.com.br/a/sc/f/florianopolis/lei-ordinaria/2019/1063/10628/lei-ordinaria-n-10628-2019-institui-e-define-como-zona-livre-de-agrotoxicos-a-producao-agricola-pecuaria-extrativista-e-as-praticas-de-manejo-dos-recursos-naturais-no-municipio-de-florianopolis

Também no segundo semestre de 2019, tramitou na Assembleia Legislativa do Estado do Paraná um projeto de lei que criava uma “Zona Livre de Agrotóxico na Região Metropolitana de Curitiba”. Porém, com uma conjuntura desfavorável à aprovação, o projeto foi retirado de pauta a pedido do próprio autor.

“Áreas livres” da mineração

No cenário internacional, no que diz respeito à mineração, algumas “áreas livres” ou “proibitivas” para a atividade são chamadas de “No Go Zones”.  O termo se inaugurou em 2003, quando ONGs pediram num evento das Nações Unidas que as empresas de mineração e instituições financeiras adotassem um conjunto de “zonas proibidas” para a atividade.

A indústria do setor, por meio do Conselho Internacional de Mineração e Metais (ICMM), uma associação que abrange um conjunto de mineradoras, sinalizou progresso nesse debate ao reconhecer que “por serem considerados de grande importância natural ou cultural global” os Sítios do Patrimônio Mundial constituem zonas que deveriam estar livres da atividade.  No entanto, o avanço da discussão encontrou resistência de outras tantas mineradoras e de instituições financeiras.

Alguns países continuam a adotar atualmente essa terminologia internacional. Em 2010, o governo da Índia categorizou áreas no país como áreas “permitidas” e “proibidas” (Go zones e No Go Zones) para mineração de carvão. Na época, a situação de grandes campos de carvão foi estudada e discutida. Enquanto 70% desses campos caíram em áreas “permissivas”, os 30% restantes estavam em áreas “livres”, isso significa que essas últimas áreas não devem ser consideradas para mineração em nenhuma circunstância.

Em meados do ano passado, um dia depois do primeiro-ministro local lançar o processo de leilão de 41 blocos de carvão para mineração comercial,  o Parlamento usou a categoria adotada dez anos antes para garantir que o leilão de 21 blocos de carvão localizados nessas áreas proibidas, consideradas ecologicamente frágeis e que sustentam a subsistência de várias comunidades, fosse cancelado.

Exemplos mundiais do “direito de dizer não”

No livro “Diferentes Formas de Dizer Não. Experiências Internacionais de resistência, restrição e proteção no extrativismo mineral”, organizado pela pesquisadora Julianna Malerba, que é assessora nacional da ONG FASE e doutoranda em Planejamento Urbano e Regional pela UFRJ, são mapeados estratégias utilizadas por comunidades afetadas, organizações e movimentos sociais em diversos países  para resistir às violações e à devastação ambiental provocada pela mineração e extração de petróleo.

A pesquisadora apontou ao Lei.A as potencialidades de pensar os territórios livres de forma conjunta: “Existe muita conexão e potência em colocar num conceito como esse o debate de elementos que demonstrem a insustentabilidade desses diferentes setores do ponto de vista ambiental e social. Por isso que é um conceito que não se limita a ideia da mineração, ele se conecta e tem sido utilizado para questionar esse modos operandi e o discurso hegemônico que esses diferentes setores industriais mobilizam. São setores que têm muita semelhança no modo de agir, nos danos que causam e no que eles representam para o modelo de desenvolvimento do país. Uma premissa nossa é não criar ilhas livres e sim conectar para que o Brasil seja, por exemplo, livre de transgênicos e com outro modelo mineral. Um país que tenha uma política orientada para o bem-estar das pessoas e não para a lucratividade das empresas. E isso faz muito sentido.”  

Alguns exemplos de territórios em diferentes países que disseram “não” à mineração ou a exploração de petróleo estão no livro organizado pela pesquisadora.

Crédito:|bilaterals.org

Crédito: plataforma-troca.org

Crédito: Primera Plana

Conheça mais profundamente esse e outros exemplos de territórios livres no livro que está disponível para download gratuitamente (link)

 “Territórios livres” da mineração no Brasil 

No Brasil, o debate de “áreas livres” ganha o espaço público em meados de 2013, quando um projeto de lei de autoria do governo federal começou a tramitar no Congresso Nacional, propondo a revisão do Código de Mineração no país. Nesse momento, um conjunto de organizações e movimentos sociais se juntou em torno do Comitê Nacional em Defesa dos Territórios Frente à Mineração (CNDTM) para incidir no processo de debate sobre a nova lei.

 Uma das demandas apontava para a necessidade de que o novo marco regulatório considerasse o estabelecimento de “áreas livres de atividade mineral”, que deveriam incluir “áreas protegidas, bacias de captação de água, locais de importância histórica, florestas primárias e territórios onde as atividades econômicas, usos socioprodutivos e culturais sejam incompatíveis com a atividade mineradora e os impactos a ela associados”.

 Desde então, a temática de territórios livres foi incorporada por movimentos sociais e ONGs, levantando o debate que era necessário ouvir as populações locais e propor uma agenda propositiva, apresentando um modelo de desenvolvimento para os territórios.

De “área livre” para “território livre”

“Isso surgiu com uma luta por ‘áreas livres de mineração’ e depois a gente adequa para o termo ‘territórios livres de mineração’. Não é só um termo, a mudança é no sentido de que a luta não é por uma área geográfica, e sim por um território, onde as pessoas se organizam para construir de fato as políticas que entendem para o seu território e para viabilizar o projeto de desenvolvimento que eles enxergam adequados para lugar” JEAN CARLOS SILVA | Coordenador do Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM)

#aja

Libertando-se da minério-dependência

Libertar os territórios e os povos de um modelo violento de mineração é uma tarefa que vai muito além da simples negação do extrativismo industrial. Significa viabilizar alternativas econômicas que sejam socialmente justas e ambientalmente sustentáveis, como a agricultura familiar, a agroecologia, o turismo de base comunitária e ecológica. Alguns territórios fizeram essa opção e conseguiram preservar seus recursos naturais.

Em 2018, o Supremo Tribunal Federal (STF) deu ganho de causa ao município de Caldas, no Sul de Minas Gerais, que enfrentava nos tribunais um grupo de quinze mineradoras que contestavam um artigo de uma lei municipal, que criou a APA Santuário Ecológico da Pedra Branca, local de recarga de várias bacias hidrográficas locais e de turismo. Essa lei proibia a abertura ou reabertura de novas lavras de mineração e a sua expansão na APA.

A decisão, dada pelo ministro Dias Toffoli, ainda que não trate especificamente da mineração, referendou a competência dos municípios para legislar sobre a proteção de seus recursos ambientais, inclusive para impedir novos licenciamentos.  

Abriu-se ali um precedente para comunidades e territórios inteiros se despertarem para o “direito de dizer não”.

Alguns deles estão na região da Zona da Mata, no sudoeste de Minas Gerais, na tríplice divisa com o Rio de Janeiro e Espírito Santo, onde uma rede de atores (prefeituras, câmaras municipais, ONGs, sindicatos, universidades, movimentos sociais e setores da Igreja Católica) vem se organizando para o enfrentamento à mineração. 

 Essa revolução moderna tem incomodado o status quo não só porque escancaram a violência e os benefícios dados ao modelo brasileiro de mineração. Mas também porque está provando ser possível construir leis de proteção das águas; além de novas tecnologias sociais de baixo custo; preservação ambiental e geração de renda.

“Territórios livres de mineração: o direito de dizer NÃO” é o nome dessa série de conteúdos especiais que nós, do Lei.A, lançamos aqui e para a qual convidamos você a acompanhar os próximos episódios.

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